CRÔNICAS


SOMOS DIFERENTES:  NOSSAS OPORTUNIDADES TAMBÉM

Mesa de bar, cervejinha gelada, petisco, sol, mar azul e uma boa conversa. Meu amigo Freire acaba de chegar. Chegam com ele Malcolm, Mezirow, Palmer, Schon, Marilene Chaui e outros não tão famosos, ainda, mas também queridos.
Deixa eu me apresentar. Profissão, professora, a alguns anos... é melhor não contar quantos.... Minha rotina. Primeira turma, segunda feira, instituição privada, área nobre da cidade, curso de administração, primeiro período. Preço da mensalidade R$ 700,00. Segunda turma, quarta feira, instituição privada, do outro lado da cidade, curso de administração, primeiro período. Preço da mensalidade R$ 180,00. Terceira Tuma, sábado, voluntária, curso tipo “amigos da escola” em uma favela distante, preparação para vestibular.
Uma mesma pessoa, eu, tentando ser uma educadora. No meio disso tudo, mestrado. Didática. Ainda bem que tenho amigos com quem compartilhar. Schon pede uma capirosca e diz  “as pessoas só aprendem depois de passar por um período de confusão”. Valeu amigo. Pede mais uma, pois estou totalmente confusa.
 Como aplicar tudo que estou aprendendo. Como aproximar tanta teoria da minha prática? Como escapar dessa sensação de impotência?  Encantar a educação me diz Palmer. Reflexão na ação continua Schon. Conheça seus alunos, retruca Freire. O garçon coloca mais uma na mesa e não entende nada da discussão. As normas precisam ser cumpridas, lembro do meu amigo Pedro Lincon, mas nunca desista.
Perfil das turmas generalizando e sendo “burra”, quem falou isso; meu amigo Feitosa, mas no geral: primeira turma, a maioria trabalha na empresa do pai, vai quando quer, mostra sempre o último modelo do celular, viaja para a Espanha para aprender espanhol, e para New York para passear e comprar, claro. Segunda turma trabalha no comércio, centro do Recife, sem ar condicionado, sem acesso a banda larga, ah! sem acesso a internet, pelo menos existem as Lan House. Sabe que precisa estudar Inglês, mas só depois da faculdade.  Terceira turma sonha com uma vida melhor por isso faz curso de informática em uma ONG, querem entrar na Federal, só se as cotas ajudarem.
Como professora tento adaptar-me ao perfil dos meus alunos. Adaptação do vestuário (ah! Essa dica foi de minha amiga Geo). Na segunda coloco minha melhor roupa, maquiagem, salto alto. Na quarta posso relaxar um pouco, mas no sábado posso até ser desleixada, sandália baixa, calça de Jean surrada e camiseta. Devo adaptar também o conteúdo, o nível de compreensão é totalmente diferente. Também preciso adaptar os exemplos. Na segunda posso contar que já fui para Disney e sei esquiar. Na quarta se conto eles dizem que não podem nem sonhar, no sábado, eles nem sabem que a Disney existe. Pergunto pro meus amigos: Onde estarei sendo eu mesma? A confusão é diária, seria a carnavalização do indivíduo? Várias máscaras para vários ambientes? Mas o objetivo é o mesmo: educar.  Peço mais uma cerveja e comento sobre a semana.
Noticia: assassinato de um pai por seu próprio filho em uma área nobre da cidade.  Primeira turma: Absurdo, é um marginal, devia estar drogado, imagina... isso é culpa de Lula, aquele analfabeto Segunda turma: Prefiro discutir futebol, não vai mudar minha vida, além do mais pobre é assim mesmo, vamos ver o que Hebe vai falar. Terceira turma: Olha gente eu não sei por que tanto estardalhaço com esse assunto, a gente aqui já viu tanto “presunto” de mãe que mata filho, de filho que mata o pai, de tio que pega a sobrinha...
Na sala de aula: reflexão sobre a ação: não fazia parte do meu conteúdo até Schon aparecer. Devo deixar rolar a discussão, ou volto para o conteúdo. O improviso me faz continuar. Freire olhando a morena que passa diz:  são as experiências deles, deixem eles falarem.
Desabafo com meus amigos, depois de fazermos um brinde ao sol. A morte, como todos os outros conceitos são decifrados de formas diferentes por cada turma. Somos diferentes e nossas experiências moldam nossa maneira de ver o mundo. Como docente devo ser capaz de olhar o outro através da perspectiva desse outro. Saber me posicionar diante dos fatos, e dar oportunidade de que cada um se posicione. Ah! Como é difícil ensinar. Vou tomar um banho de mar. De repente Chauí, só podia ser ela faz outro brinde a uma palavra: Oportunidade.
 Desisto de ir pro mar, e o desabado continua. Oportunidades: palavra chave no meio da minha confusão. Estou tentando fazer a minha parte, seguindo o que vocês me aconselham, porém as oportunidades nunca serão as mesmas para essas pessoas. A discussão esquenta. Será que como docentes devemos nos preocupar com isso? Será apenas um problema do governo, do sistema, ou o assunto é muito complexo, não adianta nada questionar.  Freire agora olhando pra galega, não aquela do meu amigo Rosivaldo, comenta:
Olha....Daqui a pouco você e seus amigos, ainda não famosos, serão mestres, doutores, estarão no nosso lugar, escrevendo primeiro para a Madrasta, ou você acha que com a gente também não foi assim, mas depois serão lidos, analisados, questionados e, se nessa trajetória, começarem a estimular seus alunos a serem críticos com o que está posto estarão cumprindo seu papel seja em que ambiente for, pois maior do que a certeza que as oportunidades realmente não são iguais para todos, é a convicção que somente através da educação podemos mudar essa situação.Vou para meu banho de mar, olho pra mesa, e penso...tenho em quem me apoiar (amigos famosos), tenho com quem compartilhar (amigos não famosos, ainda).... mergulho no mar azul com a certeza de estar no caminho que escolhi para trilhar.